quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Lógica

LÓGICA

Homem: tentativa de suicídio.
Poema: homem mais seu umbigo.
Homem: poema mais seu umbigo.
Poema: tentativa de suicídio.

H.B.L.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Ensimesmado


Escultura "Ensimesmado" - Helena Laverón            




ENSIMESMADO


Oculto meu rosto sob o deserto,
ofereço um corpo, nunca um verso.
Sou incomum demais para
permanecer concreto


H. B. L.


José, o mendigo


JOSÉ, O MENDIGO
É certo que o dia nascia, a derramar sua ociosidade, um tanto miserável, como se houvesse algum empecilho que o impedisse de passar para o infinito. Nada mais ordinário. A aurora se apresentava preguiçosa, junto a uma fina neblina. Supor-se-ia que o dia acabaria como as demais insignificantes páginas do mês de agosto. Os corpos iam se contorcendo sobre a cama, sem pressa. As janelas, a se abrirem, recebiam mais uma dose do gélido vento e escassos raios solares, essa espécie de cobertor que abranda as baixas temperaturas. A pastelaria, um cubículo laranja rodeado de mesas brancas e cadeiras vermelhas, já estava há muito recebendo seus fiéis clientes, algumas dezenas de trabalhadores de mãos calejadas cuja única vaidade era possuir alguns cigarros disponíveis para oferecer aos colegas. A clientela, satisfeita com o pastel engordurado, mas caro, e com o cafezinho mais que amargo, seguiam igualmente para a labuta.
 Na tarde anterior ocorrera defronte à pastelaria, na praça municipal, um episódio que o narrador desta história não pode deixar de contar. A noite se exibia e os mendigos buscavam o aconchego da praça, um ponto de descanso para aqueles cuja dignidade lhes foi negada. Meia dúzia de maltrapilhos se distraia a rir e fumar no centro da referida praça quando dois policiais se aproximaram, cada um a portar um revólver e extremamente preocupados em intimidar, e pediram que todos se retirassem. Segundo o relato dos policiais, era uma medida de segurança, um meio de proteger o local que se encontrava em reforma. Ao notar a hesitação dos mendigos, os policiais mudaram o discurso e, grosseiramente, disse que a presença dos “senhores” se tornara de certo modo indesejável para os moradores das redondezas. Ato contínuo os maltrapilhos não esboçaram qualquer reação, saíram da praça um tanto mais insatisfeitos com a vida – cada um levava dentro de si uma revolta crescente. Entre os mendigos expulsos estava José.
A noite fora intranquila para José, o mendigo. O receio de que alguém poderia chegar a qualquer momento e expulsá-lo daquela calçada, em frente à pastelaria, o deixou inquieto, sem sono. Num momento de descuido, dormiu. Foi acordado com uma série de pontapés, dados por trabalhadores infelizes que chegavam para o café. Com os lábios inchados e sangrando intensamente, acrescido de uma insuportável dor no corpo, José, o mendigo, saiu correndo, desesperado como alguém a fugir da morte. O dia já lhe roubara um sorriso.
A manhã, escrita pela rotina, tinha um personagem mais acabrunhado que de costume: José, o mendigo. Convém uma apresentação formal. José, o mendigo, é um senhor de quarenta e cinco ou cinquenta anos que nos últimos tempos tem como cama as ruas do centro da cidade e, particularmente, a praça municipal como asilo. Seria infelicidade minha descrevê-lo como amargo e rabugento, pois não o era. Trata-se de um homem de sorriso amarelo que tem por hábito rir de nossas tantas imbecilidades; sobrevive a colher nossos tantos restos. José, o mendigo, é, antes de tudo, um sujeito de semblante humilde, cujo olhar desperta na mais insensível das pessoas um sentimento que beira a cordialidade. Apegue-se a um pouco de cordialidade, parece ser a tradução mais plausível da mensagem que aqueles olhos miúdos transmitem. O dito até aqui basta para retratá-lo.
José, o mendigo, já se recuperou da recepção que o dia lhe proporcionara. Tem consigo um pouco mais de ira. Estático próximo a um cruzamento, observa o céu como se admira o infinito: a indagá-lo.
São seis e quarenta e cinco, o dia verdadeiramente começa com um quê desmotivador no pequeno município. As crianças vão preenchendo o vazio da manhã com inocentes sorrisos. Os pais a acompanham, calados, amargos, sem deixar transparecer o mais leve humor. O sinal fecha logo adiante. Súbito os transeuntes como que despertam para um acontecimento extraordinário. Um homem está nu, a correr pelas ruas, vociferando: Atentem para minha insignificância! Atentem para minha insignificância! Atentem para minha insignificância!
Este homem, como pode imaginar o leitor, é José, o mendigo.

Abra aspas para José, o mendigo:
José desejava gritar, provocar, despertar, apreciar alguma reação por parte de seus iguais. José, o mendigo, não pôde despertar como de costume: a sorrir. Queria devolver a quem quer que fosse os pontapés que lhe acordaram. Queria agredir os olhos dos homens com seu protesto. O que significava seu grito? “Eis como me deixaram!”
Feche aspas para José, o mendigo:
Expostos àquele instante, os pais se preocuparam primeiro em não permitir que os filhos continuassem a desfrutar da cena. Depois, passado o susto inicial, três indivíduos corpulentos dominaram José, o mendigo; um deles, o que portava um cobertor todo rasgado, cobriu suas vergonhas, as vergonhas do mundo. O homem que o cobriu era seu colega na calada da noite.
A polícia fora acionada. Não demorou muito os policiais chegaram. Já aí José, o mendigo, tinha sido covardemente espancado por uma dezena de “conservadores”.
− Soltem-no! – ordenou a autoridade.
A ordem foi prontamente atendida.
− Já nos vimos, não? – indagou um dos policiais, com um tom de voz ameaçador.
− Evidentemente – redarguiu José, o mendigo. Ato continuo cuspiu no rosto de um de seus agressores.
Ouviu-se palavras de baixo calão.  
− És o mendigo da praça, não? Gostou do despertador que lhe ofertamos? – prosseguiu o policial.
José, o mendigo, continuou calado.
− “Atentem para minha insignificância!!!” – o que pretendia, senhor?
− Protestar, apenas protestar.
− Agrediste a sociedade, estás preso. Siga-me imediatamente – disse o policial, ríspido.
− E agora, José? – perguntou o mendigo que o havia coberto.
−“ A festa acabou, a luz apagou”, foi a resposta.
E o povo sumiu.
 Heitor Bállis Lênihon